Karina Rocha
Resenha Crítica : O último alerta Gaia e o testamento de Lovelock
A Vingança de Gaia (2006), livro escrito pelo cientista inglês James Lovelock, é considerado seu testamento, sua carta de alerta à população da Terra. Para entendermos exatamente sobre que vingança ele fala e porque seu livro é um alerta, precisamos primeiramente entender o que é Gaia. Vamos voltar no tempo e encontrar James Lovelock no fim da década de 70, quando, ainda um cientista desconhecido, começou a questionar o que seria vida e que tipo de planeta a sustentava. Foi então que ele percebeu que o modo como nos referíamos ao planeta (e por consequência, o entendíamos) estava incompleto.
A hipótese de Gaia, como ele expôs em Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra (1986) defendia que “a vida pode ser um produto do acaso e de circunstâncias oportunas, mas uma vez estabelecida no planeta, toma conta dele.”
Embora simples, sua teoria demorou décadas para ser aceita. Havia dificuldade por parte do público e da comunidade científica em assimilar o conceito da Terra como um todo-vivo, (nota-se que o termo Biosfera difere do conceito de Gaia, pois só se considera Biosfera a estreita faixa de terra que cobre o planeta), e o próprio Lovelock tinha dificuldades em explicar, por falta de metáforas satisfatórias, o que seria Gaia.
Foi aos poucos que ele chegou lá, lançando perguntas e incitando cientistas a respondê-las. Seus questionamentos iam na contramão da ideia até hoje arraigada de que somos um acaso fortuito no cosmos—incrivelmente sortudos por habitar o único planeta com condições para comportar a vida. Para Lovelock, é o oposto: a habitabilidade da Terra existe apenas por que a vida que se instalou nela, através da manipulação química dos oceanos e da atmosfera, definiu seu termostato e a mantém dentro de um intervalo de temperatura confortável para ela mesma, a vida. Ou seja: a vida é um agente ativo em sua própria sobrevivência, e ‘conversa com o chão’ onde se firmou. Como o próprio autor expôs, “Chamo Gaia de um sistema fisiológico porque parece dotada do objetivo inconsciente de regular o clima e a química em um estado confortável para a vida.”
A teoria inicialmente polêmica de que a Terra é um organismo vivo e auto-regulador aos poucos foi sendo aceita, e, por fim, comprovada. Enquanto isso, mais livros surgiam: Depois de Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra vieram As eras de Gaia (1988), Gaia, a ciência prática de uma medicina planetária (1991), Homenagem à Gaia (2000) e A Vingança de Gaia (2006).
A Vingança de Gaia
A Vingança de Gaia é um livro de alerta, mas não um livro sobre o fim do planeta. Seu ponto fundamental— e segundo Lovelock, a chave para a vida aqui —repousa sobre uma condição fundamental: temperatura. É ela que propiciou no início que os oceanos se transformassem em uma sopa de vida e o assentamento de espécies em todo recanto do planeta, e que ainda hoje influencia tudo, desde colheitas a todo resto. Portanto, quando Lovelock levanta a questão do ‘aquecimento Global,’ (duas palavras que já não parecem tocar mais ninguém) ele fala sobre isso; sobre o desequilíbrio de uma condição essencial à vida que mexe com uma intrincada rede de simbioses (entre si e com Gaia) que, uma vez alterada, trará mudanças fatais para todos. O autor diagnostica: a Terra está com febre.
Nós, humanos, crescemos em tal número que nossa presença no planeta se compararia a uma doença. Adoecida por uma infecção, como Gaia reagirá? Destruindo os organismos invasores que a incapacita? Ficando cronicamente doente? Destruída pela infecção? Ou desenvolverá uma relação de simbiose com a doença? O que estamos fazendo (ou demorando a fazer) a respeito disso decidirá nosso futuro. Oras, mas no início do parágrafo você disse que A Vingança de Gaia não é um livro sobre o fim do planeta. Exatamente: Não é. A Terra já deu inúmeras provas que pode cuidar de si; quando ela resolver revidar, a espécie a ser extinta seremos nós. O livro é sobre o nosso fim.
Ações.
A solução apontada por Lovelock em seu livro é antipopular. É o tipo de solução que, se você é daqueles que preferem não se mexer e pagar para ver, não vai agradar. O problema é que, interesse-se você ou não pelo assunto, o que o cientista descreve é um fato. Somos sete bilhões de humanos querendo melhorar de vida; querendo desenvolvimento e bem estar. É um erro, segundo o autor, crer que mais desenvolvimento é possível e que a terra continuará a prover em igual escala por mais alguns séculos.
Ah, mas existe o desenvolvimento sustentável, correto?
Tentar equilibrar os pilares bem-estar social/prosperidade econômica/proteção ambiental e sermos todos felizes reciclando e levando nossas próprias sacolas ao supermercado não vai adiantar. Lovelock compara a espera de que o desenvolvimento sustentável reverta os estragos que causamos até agora a esperar que um doente de câncer seja curado ao parar de fumar.
Não é nem preciso dizer (mas digo assim mesmo) que adotar a política do laissez-faire (deixar as coisas como estão, fechando os olhos para o aríete destruidor que o progresso virou) trará mudanças globais desastrosas. Quando éramos poucos, mais ou menos um bilhão por volta de 1800, talvez pudéssemos nos dar ao luxo de pensar assim. Hoje? Hoje não dá mais.
Mas a Terra não parece doente. Olhe ao redor.
A Terra manda sinais, e cientistas nos alertam há décadas sobre eles. Lovelock aponta que nossa dificuldade em enxergar esse futuro sombrio recai sobre o fato de sermos “carnívoros tribais.” Estamos programados por nossa herança social e genética a ver os outros seres vivos como comestíveis e nos importarmos mais com nossa tribo nacional do que por qualquer outra coisa. Eu, pessoalmente, acredito que existe também um modo funcionalista (e errôneo) de ver o mundo. Animais, pedaço de terra, árvores, plantas ou qualquer outro elemento desse planeta são vistos e valorizados, pela maioria dos humanos, como funcionais ou não. Se eles tem função, merecem existir; se não, nos é indiferente se morrerem. Mais triste, impossível.
Para o autor, ainda não ‘percebemos’ o que está acontecendo. Se nós percebêssemos, precisaríamos ainda passar para um segundo estágio, o de entender o problema. Só depois do reconhecimento e compreensão é que poderíamos passar para a etapa final de resolver o problema. Ou tentar, ao menos.
Mas por que não conseguimos ser verdadeiramente tocados pelo que está acontecendo?
Cortamos à décadas o vínculo com a terra; não pisamos mais em seu solo, não viajamos mais por ela. Como amar o que não se vê? E não, não vale a viagem de carro pelo interior, ou os dias que você passou no super fazenda-clube.
Responda com sinceridade: qual foi a última vez que tirou os sapatos e sentiu a terra sob os pés? Que saiu dos limites das nossas super cidades de concreto e enveredou-se por um ecossistema puro? Não estou falando aqui de fazendas com sinal de TV a cabo, ou a praia do final de semana. Estou falando sobre floresta. Praias desertas. Oceanos limpos. Planícies solitárias. Quando foi que você realmente a visitou?
O contato com a natureza nas circunstâncias que escrevi acima despertam em muitos uma reação espiritual, quase religiosa. Quem já não se sentiu tocado por um cenário, um animal, uma experiência que envolvia o mundo? Quem sentiu, sabe do que estou falando. Quem não sentiu, deveria tentar. É difícil entender a importância que o movimento conservacionista prega se nunca sentiu esse vínculo primitivo com o chão.
Ah, mas esse tipo de visão negativa do futuro é balela, a terra está aí para ser domada, claro que ela tem uma função, a de suprir nossas necessidades. Se você se identificou com esse pensamento, você faz parte de uma corrente (bem maisntream, na verdade) religiosa e humanista que acredita que a terra existe para nos servir e para ser explorada em prol da humanidade. A opinião de Lovelock? Há uma grande chance da Terra discordar dessa visão.
Mas e nossos esforços globais em discutir o assunto, como a Eco 92 e o protocolo de Kyoto?
Para o autor, andamos discutindo sobre o futuro da maneira como fazemos a coisa a séculos: repetindo velhas fórmulas, com políticos pouco engajados em resolver efetivamente o problema e tentando apenas ganhar tempo. Não houve ainda, como ele escreve, aquela sirene soada no meio da noite, aquele sono interrompido pela iminência de um possível ataque relâmpago. Para o cientista isso é um questão de tempo, mas a batalha que travaremos será bem mais mortal que qualquer blitzkrieg. Declaramos guerra ao planeta quando o alteramos e violamos outras espécies e sua convivência harmônica. Quando extinguimos seres tão antigos quanto nós. Quando, utilizando mais uma metáfora bélica, invadimos o pais vizinho e o chamamos para a guerra.
A solução
A solução apontada por Lovelock não é fácil, e certamente desagradará a todos.
Em primeiro lugar devemos frear, imediatamente, tudo que aquece de alguma forma o planeta.
A primeira solução apontada por ele é interromper a queima de combustíveis fósseis.Peraí, você está dizendo petróleo? Sim, é isso mesmo: parar de queimar (ou seja, usar) petróleo.
Em segundo lugar, toda e qualquer destruição de habitats naturais precisa ser imediatamente zerada. Não podemos mais abrir terras para cultivar, sob o risco de nos tornarmos aquele marinheiro que, com frio, queima a madeira do próprio barco para se aquecer. Isso significa diminuir pastagens, sim. Melhorar processos também.
Em terceiro, temos que parar de acreditar que acordos internacionais nos salvarão. Eles demoram demais e resolvem pouco, e geralmente não são levados a sério. O que precisamos é uma mudança de corações e mentes. Parte difícil, essa.
Em quarto, precisamos, segundo ele, reconsiderar as possibilidades de uma energia limpa, relativamente barata e muito difamada: isso mesmo, ele está falando da energia nuclear. Ponto polêmico.
Por fim, precisamos reavaliar a visão de nosso lar terreno. Para aqueles que tem fé, precisamos devolver o planeta ao posto de sagrado, e ver sua destruição como uma transgressão às regras santas: algo da ordem do imoral e do profano.
Talvez, se agirmos rápido e em conjunto, poderemos reverter as mudanças climáticas que já começaram a alterar o equilíbrio que sustenta a habitabilidade em Gaia. Gaia é uma mãe acalentadora mas bastante rigorosa, e nós estamos nos comportando como adolescentes rebeldes que, embora tenham grande potencial, pensam apenas em benefício próprio.
No fundo, acho que sabemos de tudo isso. Que a alta concentração de dióxido de carbono vai esquentar a terra; que o fim das abelhas vai afetar a produção de alimentos, que nossa comida está infestada de pesticidas, agrotóxicos e hormônios. Mas quem está disposto a parar de usar o carro, comer o que quiser e se divertir sem pensar nas consequências?
Esperamos que algo mude em nossos comportamentos e mentes. Que passemos a discutir práticas hoje vistas como imutáveis, e que consigamos ultrapassar nossa negação estrutural e enxergar que o futuro talvez não seja tão brilhante como gostaríamos de imaginar.
Fica a dúvida se conseguimos visualizar a Gaia do futuro. É importante que pensemos em um cenário agonizante, com a vida em seus últimos estágios. O povo do futuro sem sombra de dúvida questionará onde estava nossa capacidade de ver além e por que demoramos tanto para agir.