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  • Augusto Milagres e Gomes

Uma história de galhos tortos e motosserras: a incansável saga das florestas anãs

Sempre quando falamos sobre savana, a primeira imagem que vem à cabeça é da vastidão dos campos africanos, povoados por leões, guinus, rinocerontes e girafas. Mas as savanas ocorrem em várias regiões da Terra, e a mais rica delas está aqui, bem pertinho de nós: o Cerrado! Se você já teve oportunidade de passar por ali, certamente observou as estranhas florestas anãs, ou florestas de cabeça para baixo, como também são chamadas em função das pequenas e tortuosas arvoretas com suas extensas raízes.



O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, ocupando originalmente 25% do território nacional, o que o coloca atrás apenas da Amazônia em extensão territorial. Ele se estende por pelo menos 10 estados brasileiros, do norte do Paraná até o Maranhão, limitado ao sul pelos Pampas, ao norte pela Amazônia, a leste pela Mata Atlântica e pela Caatinga, e ao oeste pelo Pantanal. São cerca de dois milhões de quilômetros quadrados do Brasil central dominados por campos, veredas, matas e savanas típicas que compreendem uma incrível diversidade de ecossistemas e formas de vida.


Muita gente não sabe, mas o Cerrado é a savana com a maior biodiversidade do planeta. São conhecidas mais de 13000 espécies de plantas para o bioma, 250 espécies de mamíferos, 850 espécies de aves, 280 espécies de répteis, 200 espécies de anfíbios e 1200 espécies de peixes. Os invertebrados e fungos ainda são pouco conhecidos, mas estimativas apontam para cerca de 100000 espécies em cada um destes grupos. Outro aspecto que faz do Cerrado uma savana única é a alta taxa de endemismos, ou seja, o grande número de espécies que só ocorrem ali. Para ter uma ideia, quase 40% de todas as espécies de plantas e répteis e cerca de 50% dos anfíbios não são encontrados em nenhum outro lugar do mundo.


Pode não parecer, mas logo abaixo da vegetação tortuosa e ressequida se encontra a grande caixa d’água do Brasil. O Cerrado é o lar das nascentes de algumas das mais importantes bacias hidrográficas do Brasil e da América do Sul: a bacia do Amazonas, do São Francisco, do Araguaia-Tocantins, do Parnaíba e do Paraná-Paraguai. Os rios que escoam dos chapadões do Brasil central abastecem parte considerável da população brasileira e alimentam os grandes aquíferos do país - reservatórios naturais de água subterrânea, que absorvem e filtram a água que escoa da superfície, fornecendo água limpa e de excelente qualidade para o uso humano.



Essas e outras tantas riquezas naturais presentes no Cerrado propiciaram a ocupação humana na região a pelo menos 13000 anos. Eram grupos de caçadores-coletores que deram origem às mais de 83 etnias indígenas conhecidas atualmente para o bioma, como Xavantes, Tapuias, Carajás, Crahôs, Xerentes e Xacriabás. Os primeiros colonizadores europeus chegaram ao Cerrado em meados do século XVI, mas a grande reviravolta na ocupação do bioma só aconteceu ao longo do século XX, com o incentivo governamental para a expansão da agropecuária e para o estabelecimento de indústrias nos estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais. A preocupação com a proteção das fronteiras nacionais também levou a um estímulo para a colonização do Cerrado: foi a “marcha para o oeste” na sua versão tupiniquim. O maior marco desse processo foi a construção de Brasília, na década de 1950. Mais recentemente, o aumento da demanda por minério de ferro no mercado internacional trouxe uma nova e crescente ameaça para o Cerrado: a mineração.


Como resultado de todo o processo de expansão agropecuária, industrial, demográfica e urbana, as pressões sobre o Cerrado brasileiro se multiplicaram a partir da segunda metade do século XX. Estimativas conservadoras mostram que pelo menos 50% da área original do Cerrado já foi perdida pela ação humana, enquanto as mais pessimistas apontam até 80% de perda. A proteção do Cerrado também ocorre de forma desigual ao longo do território. A maior proporção das áreas ainda conservadas se encontra na sua porção norte, nos estados de Piauí, Maranhão e Tocantins, enquanto os estados do sul (São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul) apresentam as menores áreas de cobertura vegetal original. Além de pequenas e isoladas, as áreas protegidas no Cerrado representam uma fração ínfima da extensão territorial que esse bioma originalmente ocupava.



Somente 2% do bioma estão legalmente protegidos, e estimativas indicam que pelo menos 20% das espécies endêmicas e ameaçadas permanecem fora dos parques e reservas existentes. Essa delicada balança entre preservação e desenvolvimento econômico fez com que o Cerrado entrasse para a seleta lista dos 25 hotspots mundiais: áreas com excepcional biodiversidade vegetal e que já vivenciaram uma perda considerável do hábitat original. São regiões que têm prioridade máxima para o planejamento de ações de conservação em nível global. Ou, em tese, deveriam ter.



Infelizmente, ainda assim o Cerrado permanece secundário nas preocupações ambientais, mais voltadas aos biomas florestais, como a Amazônia e a Mata Atlântica. Enquanto a fauna e a flora do bioma ficam cada vez mais sufocados dentro dos seus últimos refúgios, a segurança hídrica e alimentar do Brasil se vê ameaçada por grandes projetos corporativos que visam o lucro das empresas multinacionais. O futuro da biodiversidade da savana mais rica do planeta e das pessoas que ali vivem está em nossas mãos. É hora de decidir, já, se queremos uma infinitude de campos estéreis ou água, alimentos saudáveis e lazer para as próximas gerações.



*Texto e fotos de Augusto Milagres e Gomes, Biólogo e mestre em Ecologia.


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